Como eu vivo repetindo pela internet afora, o meu foco são os roteiros que meu pai escrevia, e a preservação da memória do meu pai, o roteirista, mas eu respeito e admiro profundamente os desenhistas das histórias em quadrinhos Disney que papai escrevia.
Um deles é com toda a certeza o mestre do desenho Renato Canini, falecido há menos de 24 horas. Ele e meu pai, Ivan Saidenberg, que nos deixou e partiu desta para melhor em 2009 eram bons amigos, apesar da distância, e neste exato momento devem estar lá no céu colocando a conversa em dia e divertindo a Deus com seus causos e rabiscos.
Como todos sabem, ou deveriam saber, eles eram considerados uma “dupla” dentro dos estúdios Disney do Brasil. E isso era mais comum do que parece. Se vocês fizerem uma visita mais demorada ao Inducks, do meu amigo Fernando Ventura, que eu cito aqui todo santo dia, e pesquisarem suas histórias favoritas, sejam elas de papai ou não, verão que elas raramente são escritas e desenhadas pela mesma pessoa. É assim que funcionava, e pronto.
Eu sei que talvez o “certo” fosse sempre comentar algo do desenho juntamente com o roteiro, pois os quadrinhos certamente são as duas coisas juntas, mas é que eu sinto que já há muita gente comentando os desenhos e os desenhistas, porque é isso que salta aos olhos, e poucos olhando um pouco além, para as palavras.
É por isso que eu faço o que faço, e é por isso que por hoje, e só por hoje, eu vou tentar incorporar no meu comentário deste roteiro de papai para o Zé Carioca, que foi publicado pela primeira vez em 1973, algumas palavras sobre o desenho do Canini para esta história.
A ideia para esta história veio a papai de uma velha gíria: a expressão “ele/a vive na pindaíba”, era usada nos anos 1970 para descrever uma pessoa que não tinha dinheiro algum, que vivia contando as moedas. Segundo o professor Sérgio Nogueira, “Ficar na pindaíba significa estar na mais completa miséria. Segundo o novíssimo dicionário Houaiss, a palavra aparece pela primeira vez em 1899. Sua origem mais provável é o quimbundo, língua africana na qual encontramos as palavras mbinda, que significa “miséria”, e uaiba, que significa “feia”. Daí a mbindaiba (=miséria feia), que nos deixou na maior pindaíba.”
Pindaíba é, também, o nome de uma árvore de frutos comestíveis, que já foi muito comum mas que agora está em extinção. “Estar na pindaíba”, então, pode ser uma referência a alguém que não tem dinheiro nem para comprar comida, e tem de se contentar com as frutas que encontra no mato.
Mas para papai “pindaíba” certamente soou como o nome de um lugar (talvez tenha soado para ele como os nomes de outros lugares no Brasil terminados com “íba”) e ele começou a imaginar que lugar seria esse, e quem e como seriam as pessoas que viveriam lá.
Logo nos primeiros quadrinhos, onde aprendemos que o Zé e o Nestor estão fazendo uma longa viagem a pé, vemos uma pequena lesma que acompanha os nossos heróis, rastejando na grama. Apesar de não ter a clássica antena de TV na cabeça, essa era uma das “assinaturas” clássicas do Mestre Canini naqueles primeiros tempos. Aqui, a lesma é até mesmo um personagem coadjuvante que faz, em pensamento, um comentário crítico aos dois preguiçosos.
Seria esta uma homenagem de papai ao Canini, ou uma inserção bem humorada do desenhista? Agora, infelizmente, nunca saberemos ao certo.
O “Reino da Píndaíba”, habitado por uma gente pobre e ignorante, fica dentro de uma grande caverna, mais um daqueles “mundos subconscientes” que papai gostava de inventar. De um certo modo, a riqueza e a pobreza de uma pessoa, assim como seus sonhos mais loucos, são certamente, mesmo que em parte, um produto de nossas mentes subconscientes, e há quem diga que até mesmo de nossas mentes inconscientes. Papai, como bom estudioso de parapsicologia que era, pode ter querido transmitir também esta ideia.
A reação do rei do lugar ao ver os forasteiros é uma referência a algo que papai dizia que aconteceu com ele quando ele era criança: numa festa na fazenda onde ele morava algo estranho apareceu no céu, talvez um OVNI, e um dos figurões presentes resolveu se retirar para dentro da casa, “para não ver coisas que não existem” nas palavras dele mesmo.
As florestas verdejantes e as casinhas de madeira das favelas, que o Canini gostava de desenhar, também fazem suas aparições nas páginas desta história.
Depois de fazer uma revolução no lugar, mesmo sem querer, o Zé e o Nestor são libertados e voltam à superfície.
Outra coisa interessante e digna de nota é a aparência do Zé Carioca, suas roupas, que naquele tempo ainda estavam fazendo a transição do terno, gravata, palheta e guarda chuva para o jeans e a camiseta branca.
Logo no início vemos o Zé mais ao estilo do Canini, de jeans e camiseta, mas ainda de palheta na cabeça e de guarda chuva, e mais ao final de terno e gravata, mais ao estilo original. E obrigada, Mestre.