Esta história, publicada em 1973, não apresenta nenhum personagem Disney.
Naquela época o Brasil passava por um momento histórico muito delicado, com uma junta militar ocupando o Poder Executivo por força de um golpe de estado aplicado em 1964. Não haviam se passado ainda nem dez anos desde o golpe, e a imagem do novo governo já estava irremediavelmente desgastada por causa das perseguições políticas, prisões arbitrárias e tortura de prisioneiros políticos. Muitos cidadãos brasileiros morreram nos porões desse governo ilegítimo simplesmente por discordar de sua existência, e a maioria dos outros cidadãos do país vivia em constante medo de ser acusado injustamente e “desaparecer” entre as engrenagens do terror de estado.
No campo da política e da economia, o desemprego era grande, o povo vivia em condições miseráveis, a criminalidade era assustadora, políticas públicas eram coisa rara e os militares faziam vista grossa para a crescente corrupção política e roubalheira do dinheiro público, na esperança de conseguir desse modo “subornar” os políticos para que colaborassem com o golpe. Eram anos negros.
Ainda assim, os militares no poder tentavam melhorar sua imagem junto ao povo, por meio de campanhas demagógicas na TV e no Rádio, como o clássico (e infame) “jingle” intitulado “Este É Um País Que Vai Pra Frente”, de 1972.
Como parte desse pueril esforço de relações públicas, o Ministério da Aeronáutica encomendou várias histórias em Quadrinhos ao longo dos anos ao Departamento de Projetos Especiais da Editora Abril. Esta é a primeira delas, encomendada por ocasião do centenário de nascimento de Santos Dumont. E por quê quadrinhos? Já naquele tempo o povo brasileiro lia muito pouco, e os jornais eram censurados e tediosos (e impressos somente em preto e branco).
Mas, se havia uma coisa que todo mundo gostava e lia, isso eram as histórias em quadrinhos, e as da Disney acima de todas. Então, até meados dos anos 1980, se alguém queria ter certeza de que seu texto seria lido, era quase obrigado a publicá-lo na forma de quadrinhos.
Assim, diante da encomenda, a Editora Abril resolveu escalar os seus melhores artistas para a tarefa. Papai foi designado para fazer a pesquisa e redigir a história em si, e Ignácio Justo, com sua vasta experiência e talento para desenhar aviões e máquinas de guerra em ação desde as antigas revistas de Terror e Guerra dos anos 1960, foi escolhido para fazer os desenhos.
Logo se vê que quem encomendou o trabalho não entendia nada de quadrinhos: por exigência dos “clientes”, ansiosos por contar toda a História da aviação em poucas páginas, a história ganhou “toneladas” de narrativas, balões de diálogo enormes, caixas de texto em quase todos os quadrinhos, infográficos, e outras coisas pouco comuns nas histórias “normais”. A ideia era que a publicação pudesse servir inclusive como material barato e de qualidade para pesquisas escolares.
Imagino que não deve ter sido nada fácil redigir esse monstrengo em quadrinhos. Em todo caso, a qualidade da pesquisa e da redação do roteiro, aliada à simpatia dos personagens principais e aos deslumbrantes desenhos, valeram a papai (e penso que ao Ignácio Justo também) um prêmio na forma de um diploma e de uma medalha comemorativa.
Papai tinha muito orgulho disso, e até se considerava “comendador da Aeronáutica”, um título que ele planejava usar para tentar se proteger de alguma possível arbitrariedade policial, já que ele era abertamente contra o regime, o que felizmente nunca aconteceu.
Para mim, pessoalmente, o mais interessante são os personagens da história, um pai e seus dois filhos. O homem, com seus inconfundíveis óculos de pesados aros quadrados, não é outro senão o próprio autor da história. Desse modo os filhos, um menino e uma menina, não podem, pela lógica, ser outros senão meu irmão e eu. O mais curioso disso tudo é que, em 1973, nós éramos bem mais jovens que as crianças retratadas. Papai estava “sonhando o futuro” da família nas páginas, e realmente nos levou para brincar com um aeromodelo quando chegamos à idade certa. Ele adorava esses modelos, e afinal quem é o pai que nunca aproveitou a oportunidade de brincar como uma criança sob o pretexto de ensinar algo novo a seus filhos?