Esbanjando Talento

História do Pena Kid, de 1976.

Faz parte da série na qual o Peninha, na redação de A Patada, escreve a nova história do personagem sob o olhar atento e os palpites rabugentos do Tio Patinhas, que acha (mas só acha) que entende de quadrinhos.

O título é um trocadilho com “banjo“, que é o nome de um instrumento musical que mais parece um cavaquinho redondo, e que era muito popular no Velho Oeste. O fato é que o Pena Kid adora música, mas é desafinado que dói. Tão desafinado, que o povo de Cataclisma City (papai sempre escolhia nomes bem bombásticos para suas cidades do Oeste, se bem que há uma cidade chamada Tombstone City – Lápide, em português – no Oeste dos EUA) resolve acabar com a.. aham, “música” a bala.

Então nós temos na verdade duas histórias em uma, dois conflitos em um: enquanto o Peninha luta por sua liberdade criativa, o Pena Kid teima em fazer sua música. E ao contrário do caubói, que pode bater o pé e enfrentar diretamente o povo da cidade, comprando e tocando cada vez mais instrumentos (e correndo de cada vez mais balas), o Peninha não pode dizer abertamente o que ele pensa dos palpites e ideias rígidas do Tio sobre como deveria ser uma história de Faroeste.

Há também um certo elemento de cinema nas histórias do Pena Kid: às vezes, as construções são apenas fachadas de madeira, e é possível ver as escoras de pau que as mantém em pé. Em outras ocasiões, já apareceram remendos no céu, como se fosse um pano de fundo, um truque de filmagem. Desta vez, o Alazão de Pau passa a história toda escondido atrás dos quadrinhos e espiando de lá, só a cabeça de fora, como se o fundo deles fosse a própria tela onde o nosso filme está sendo projetado.

Parte do conflito do Tio Patinhas com o Peninha está no fato que a história não tem um duelo com nenhum bandido. O Peninha quer que seja só sobre a música desafinada e a reação das pessoas (e aqui eu acho que o velho ranzinza tem alguma razão), e o Patinhas quer ação, aquelas cenas que na verdade “vendem” jornal.

Sem poder impor sua vontade diretamente, o Peninha resolve então sacanear:

PK bandidos

É só depois que o Tio e chefe o ameaça de demissão que o Peninha resolve ceder e colocar os bandidos na história, mas do jeito dele:

PK bandidos 1

Aí temos, além dos Metraltons, Pancho Aldeia (brincadeira com Pancho Villa), Os Clantons (alusão ao bando de Ike Clanton – que papai achava que eram parentes dos Clintons, que governaram os EUA) e Zé C. James (Jesse James, outro bandido do mundo real)

No final, o Pena Kid, com a sua, bem, “música”, consegue fazer os bandidos se entregarem sem disparar um único tiro, e na verdade sem nem saber que eles estavam lá. O Peninha decididamente não queria fazer o seu personagem lutar hoje, e consegue dar o seu jeito de levar a história para onde ele queria sem precisar se indispor (demais) com seu tio e editor.

Que era mais ou menos o que papai fazia na Abril, às vezes. Não era raro ele tentar “puxar” um pouquinho mais para ver até onde iam os “limites” de uma história em quadrinhos.

O Tio Fiasco

História do Superpateta, de 1976.

Temos aqui mais um dos “resgates” de personagens obscuros feitos por papai. Trata-se de um tio pouco conhecido do Pateta, um velhinho louco por foguetes criado no exterior em  1965. Esse tio, aliás, aparece em apenas duas histórias de que se tem notícia: aquela onde ele é criado, e esta aqui.

O nome do personagem já diz tudo, mas o interessante é que o foguete de sucata movido a mel funciona mesmo, o que faz com que o Pateta tenha que se transformar em Super, para proteger o tio maluco de si mesmo.

A trama gira em volta da ideia fixa do Fiasco com viagens espaciais, e de todo o processo de montagem e desmontagem de foguetes, melhorias técnicas e tudo o mais, enquanto o Pateta tenta dissuadir o tio e minimizar os danos à sua propriedade e sossego, sem muito sucesso.

A confusão impera, e as explosões são muitas e frequentes, o que só aumenta a graça da coisa toda. Para completar, o velhinho nem contar sabe, e a contagem dele, que nem regressiva é direito, é realmente um barato:

Tio Fiasco contagem

Como não tenho acesso à história de criação do personagem, não sei o quanto das características dele papai usou do original, e o quanto é realmente novo, mas certamente fica o registro da “adoção”, com mais um personagem Disney potencialmente muito engraçado salvo da total obscuridade.

Minha Vida Daria Um Livro

História do Peninha, publicada pela primeira vez em 1973.

Ela foi feita primeiramente para promover o Manual do Peninha, que seria lançado pouco depois, e cujo tema é o jornalismo. Mas isso só será mostrado ao leitor nos últimos quadrinhos.

O que acontece durante a trama é uma combinação recorrente das ideias “jornalismo” e “livro”. O Peninha quer escrever um livro, mas não sabe exatamente sobre o quê. A ideia inicial que ele tem é um livro de suspense e terror, chamado “O Barão, o Porão e a Assombração”, mas o editor, no caso o Tio Patinhas, não quer nem ouvir falar disso.

Peninha livro

Mandado cobrir um incêndio no “Edifício Martelinho” (que me lembra bastante o nome Martinelli, edifício onde aliás ficava o estúdio no qual papai, seu irmão Luiz e alguns colegas produziam histórias em quadrinhos de terror nos anos 1960), nosso herói passa a história toda filosofando sobre que tipo de livro daria cada aspecto da vida e profissão dele: a vida de repórter primeiro “daria um romance”, aí “daria uma tragédia”, depois “daria uma comédia”, então “daria um conto de suspense”, e por fim “daria uma novela”. Todos esses aspectos da vida de repórter se fundem, no final, na ideia do Manual, que seria em teoria escrito pelo Peninha com o apoio moral do Donald e publicado pelo Tio Patinhas.

Nesta história também aprendemos que Patópolis tem mais um jornal, além de “A Patada” e “A Patranha”. Chama-se “A Patativa Ilustrada”.

Peninha reporteres

Aqui vemos também lançada a base para a história que seria publicada no ano seguinte, e que eu já comentei neste blog, na qual o Peninha transforma o livro de terror em história em quadrinhos. O que era para ser um livro pouco interessante, virou uma HQ de vanguarda. Às vezes, o formato é que faz a diferença.

Esse Agente Dá Pena

História do Peninha com 00-Zéro e Pata Hari, de 1977.

O Peninha acaba de ser demitido novamente, por dormir em serviço, e os agentes estão fugindo da Bronka, por causa de um microfilme. Um encontrão entre eles na porta do jornal A Patada dá início à confusão.

A partir daí todos os clichês de história de agente secreto se aplicam, com o rolinho de filme mudando de mãos o tempo todo e a perseguição cheia de reviravoltas. Dos agentes, o objeto passa para o Peninha. Depois, para o Tio Patinhas. Aí, o Peninha se disfarça de Patinhas para despistar os agentes da Bronka. Enquanto isso, os agentes do bem conseguem fugir do QG da Bronka, onde somos brindados com uma aparição do Grande Bronka, sempre de costas, sentado em seu “trono”, e com seu gato no colo.

Grande Bronka

Na verdade, nada nesta trama é mais importante do que a perseguição e a bagunça. Tem até tiroteio! Nem mesmo o microfilme e seu conteúdo, que não é revelado em nenhum momento, importam. Tanto, que o leitor nem percebe. Não vem ao caso.

Bronka tiros

No final papai devolve a história ao início, como era seu costume, com o Peninha novamente adormecido sobre a mesa de trabalho, mas com uma pequena variação, o que só torna a coisa toda mais engraçada. Tão engraçada, na verdade, que dá até pena. 😉

O Ataque Dos Pés-Pretos

História do Urtigão publicada pela primeira vez em 1977, e republicada recentemente no gibi comemorativo de 50 anos do personagem.

O nome dos Índios é uma referência a uma tribo que existiu de verdade, no Velho Oeste norte americano. Os mocassins com sola preta que eles calçavam lhes renderam o apelido de blackfeet – “pés pretos”, em inglês. Se valiam de uma agressiva cavalaria e de armas de fogo, para dominar tribos vizinhas e tocar o terror contra os invasores de pele branca. Ficou célebre uma carta que o chefe da tribo escreveu aos brancos, naquela época.

Em nossa história, Donald e Peninha vão ao sítio tentar fazer uma reportagem sobre “os problemas de um sitiante”, e encontram o Urtigão enrolado até o pescoço com problemas bem mais sérios do que os que são corriqueiros no dia a dia de um sítio comum.

Urtigao pes pretos

O que se revela depois ser uma falsa tribo de índios está tentando afugentar o Urtigão de lá, para ficar com a terra. Mas eles não são páreo para a engenhosidade dos patos da cidade, que conseguem solucionar o mistério e ajudar o capiau a se livrar dos invasores, enquanto de quebra ainda escrevem uma espetacular matéria para A Patada, mas que não vai ser publicada, no final.

No nível da inspiração de papai para a maioria das histórias de sítios, sejam do Urtigão ou da Vovó Donalda, estão a infância dele na fazenda, e também nossas frequentes visitas, naquela época, a uma chácara de um irmão de minha mãe próxima a Campinas. De tudo isso ele tirava a ambientação rural, e até uma ou outra piada inspirada pelos “causos” do meu tio ou dos vizinhos dele, e pelas farras e brincadeiras das crianças.

E tem o livro de papai sobre a História dos Quadrinhos no Brasil, não esqueçam de dar uma olhada, bem aqui.

Urtigão, 1993

 

 

Só uma página de uma história inédita, algo que papai rascunhou em 1993, quando ainda vivíamos em Israel. Notem o logotipo em Hebraico na página que ele “pegou emprestada” do Instituto de Seguridade Social (Mossad Lebituah Leumi), onde trabalhava na época.

GB006

Note-se, também, que o “rafe” (rascunho) de papai era bem melhor e mais detalhado do que o que era comum para outros argumentistas. É por isso que eu digo que na maioria dos casos os desenhistas do estúdio “só” precisavam passar a tinta nos desenhos de papai, adicionar uns detalhes, dar um jeitinho aqui e ali… mas fora isso, a história já saía da mesa de papai bem definida, e deixava pouco espaço para inserções dos desenhistas.

O Monstro Do Lago

História do Morcego vermelho (na verdade Peninha e Ronron) publicada pela primeira vez em 1974.

As tramas envolvendo esses dois personagens têm alguns itens fixos e outros variáveis: a história (quase) sempre começa com o Peninha indo pescar, crente de que não está sendo seguido, mas sempre levando o Ronron na bagagem de algum modo. Além disso, por mais que o gato dê sinais de sua presença, com miados e coisas do tipo, o pato quase nunca nota a sua presença, num primeiro momento.

Peninha Ronron lago

Depois de estabelecida a parte fixa do roteiro, papai começa a brincar com o tema. Desse ponto em diante tudo pode acontecer, e acontece. Aqui temos os nossos heróis às voltas com um terrível “bicho de sete cabeças”, um monstro que habita o lago da pescaria, e que está aterrorizando toda a região.

Isso, é claro, é um trabalho para o Morcego Vermelho, que não se furta de investigar o mistério e usa até o escafandro morcego, um equipamento dos inventados pelo Prof. Pardal visto pela primeira vez em 1973 no livrinho infantil “Morcego Vermelho Contra Mancha Negra”, também de autoria de papai. O próprio monstro do lago não me é estranho, e provavelmente também foi usado mais de uma vez.

MOV monstro lago

O que se segue é uma heroica perseguição sub aquática e enfrentamento cheio de reviravoltas com o tal monstro, que depois se revela ser um disfarce do Dr. Estigma, em mais um de seus planos maléficos. Na hora da captura e prisão do vilão até o Ronron faz a sua parte, provando que ele pode ser tão terrível quanto qualquer monstro.

O final da história é uma volta ao início, o que a meu ver estabelece uma relação de comparação: o Ronron está para o Peninha assim como o Monstro do Lago está para o Morcego Vermelho. E como todo “bom” monstro, o Ronron sempre volta.

Confusão No Clube Feminino

História da Margarida, de 1974.

Esta história foi publicada exatamente um ano antes da outra de mesmo tema, que eu já comentei aqui. A situação é mais ou menos a mesma: as moças estão em seu clube fofocando enquanto tentam começar um reunião séria, quando são surpreendidas por bandidos entrando pela porta.

Cara de Bebê e Cara de Babá viram da rua a casa cheia de mulheres e resolveram entrar na esperança de roubar algumas roupas femininas, já que acabaram de fugir da cadeia e precisam se disfarçar.

Desta vez, pelo menos, as sócias do clube conseguem contornar a situação por si mesmas, sem ter de esperar pela ajuda de algum homem. Usando seu charme feminino e flertes, elas conseguem inflar tanto o Ego dos bandidos, que eles vão enfrentar a polícia só para se exibirem, e acabam presos.

Clube feminino

Para terminar, papai “junta as pontas” da história, com a retomada da reunião que havia sido tão rudemente interrompida, no início, e que agora serve para dar o ponto e o nó finais, com uma decisão envolvendo uma “ação beneficente” que afeta os bandidos dentro da cadeia mesmo, só para chatear.

O Inventor Eletrônico

História do Professor Pardal, de 1974.

Cansado de tanto inventar inventos, o nosso inventor freelancer resolve inventar um invento de inventar inventos, para que a máquina faça o seu trabalho inventivo por ele, que assim poderá descansar um pouco.

Com um formato de caixa quadradona, a hilária máquina tem o mesmo chapéu, corte de cabelo, bico e óculos do Pardal.

Pardal eletronico

Mas mais engraçada ainda, aos olhos dos leitores de hoje, é a totalmente obsoleta tecnologia dos cartões perfurados usada para programar – neste caso alimentar, literalmente – o aparelho com os dados dos inventos a inventar.

A linha criativa, aqui, se baseia numa pergunta bastante óbvia, e que talvez por isso mesmo as pessoas naquele tempo não se faziam muito: se todas as máquinas são programadas por meio desses cartões e fitas de papel perfurados, desde as máquinas de telex aos computadores dos bancos e da loteria esportiva, o que aconteceria se os cartões de uma máquina fossem inseridos em outra? Seria possível “fundir a cuca” de um computador dessa maneira?

Outra premissa da história é baseada no velho preconceito contra as máquinas inteligentes, e no medo que temos de que elas venham a tomar o nosso lugar no mundo do trabalho e emprego, um dia. Ao fazer uma máquina de inventar, o Pardal não estaria tornando a si mesmo obsoleto? Será que é por isso que ela se parece tanto com ele próprio?

O caldo engrossa, e por fim entorna completamente quando o Pateta passa pela casa do inventor e, ao vê-lo desmaiado de sono no chão, pensa que a máquina é uma caixa de correio e entrega os papéis que trouxe a ela. O pobre inventor eletrônico bem que tenta acordar o seu mestre, mas quando não consegue joga o professor para fora de casa e começa a inventar sozinho, tresloucadamente.

Pardal eletronico 1

Como todo bom criador de monstros, o Pardal tem um trabalhão para conseguir entrar novamente (com uma “ajudinha” da Cia. Elétrica de Patópolis) e desativar o aparelho, que realmente havia feito os inventos encomendados, mas todos misturados. É aí que o Pateta volta e revela o que aconteceu, para a suprema frustração do inventor, num final tão óbvio quanto surpreendente e engraçado.

O Caso Das Frutas Furtadas

(Diga o nome desta história três vezes, bem rápido. Parece um daqueles trava línguas antigos).

É uma história do Zé Carioca, de 1984, e a sutileza da história de mistério policial não fica devendo nada aos melhores contos da literatura mundial, de Edgar Allan Poe a Agatha Christie.

O caso é que as frutas do Pedrão estão sumindo misteriosamente, e o ladrão não deixa rastros. Nosso leitor atento é novamente convidado a participar das investigações, e as pistas vão sendo espalhadas com o desenrolar dos quadrinhos.

A primeira técnica dos romances e contos de mistério clássicos é desviar a atenção do leitor com pistas falsas, para que ele não chegue à solução – que geralmente é bastante óbvia – rápido demais. Neste caso, as suspeitas recaem logo sobre o próprio Zé Carioca, porque todo mundo sabe que ele sempre foi louco pelas frutas do pomar do amigo.

O nervosismo do Zé ao ver o Pedrão se aproximando com cara de bravo e um rastelo na mão, e depois sua recusa inicial em investigar um “mero” caso de sumiço de frutas (apesar de ter investigado recentemente o sumiço de um gato, note-se bem), deixam o Nestor com a sensação de que o Zé aprontou mais uma. O que o Zé pensa quando o Pedrão promete pagar em frutas, e que só o leitor vê, é mais uma pista falsa para colocar as suspeitas no papagaio.

ZC frutas

Mas o leitor atento (e bom conhecedor da turma da Vila Xurupita) sabe quem é que é o dono de um gato naquele lugar. Isso, aliado ao fato de que não há rastros ou pegadas, ajuda a afastar as suspeitas da figura do Zé, apesar de todas as frutas que podem ser vistas sobre a mesa do papagaio em uma das cenas. Afinal de contas, o Pedrão não é o único que lida com frutas, na Vila.

ZC frutas 1

Enquanto isso, o Nestor continua desconfiando do amigo, ainda mais quando o Zé apresenta a hipótese de que um certo “homem macaco” fugido de um circo possa ser o culpado. A coisa parece tão óbvia, e ao mesmo tempo tão esdrúxula, que nem parece verdade. O Zé dá o caso por encerrado, mas o Nestor continua na cola dele, desconfiado. Quando espia pela janela do Zé e vê todas aquelas frutas na mesa, tira as próprias conclusões e vai falar com o Pedrão, que concorda em “armar” para o Zé, como punição pelo suposto furto.

E agora, leitor, o Zé é ou não é culpado? E se é culpado, por que não deixou rastros, e de quem era o gato que ele ajudou a encontrar? Será que as frutas na casa do Zé vinham mesmo do pomar do Pedrão?

Nesse meio tempo o Pedrão e o Nestor chamam o Afonsinho que, fantasiado de homem macaco, dá um susto no Zé. Mas é só quando o verdadeiro homem macaco aparece que o mistério é desvendado de uma vez por todas, e o nosso amigo é inocentado.

ZC frutas 2

Mas o Nestor e o Pedrão não vão sair impunes por terem julgado mal o amigo e o seu gosto por frutas frescas. A ironia é que o próprio homem macaco se encarrega disso. Quem mandou eles desconfiarem da palavra do Zé?